O iota (I) e o eta (H). A cruz e o cálice. Como a simples troca de uma letra mudou os rumos da História do Ocidente.

Frustrado em suas pretensões dentro do grupo, Paulo de Tarso resolve abrir sua própria franquia, onde poderia implantar livremente a sua doutrina recheada de platonismo de fácil assimilação, principalmente para os gentios. Todavia, não tencionava sair sozinho, planejava arrebanhar o máximo possível de dissidentes para sua causa. Para tal, necessitava de um chamariz. E para conseguir esse trunfo, ele intuiu que a melhor jogada seria levar consigo um apóstolo genuíno. O candidato mais óbvio e fácil de convencer não era outro se não Simão, de alcunha kepha em hebraico, a rocha, a pedra; uma forma de chamamento que apelava pejorativamente para sua origem de aldeão bronco, simplório e iletrado. Paulo, astuto mais uma vez, reverteu esse detalhe inconveniente a seu favor ao pôr na boca de Jesus as palavras emblemáticas do evangelho: tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Com um golpe certeiro, Paulo destitui a precedência de todos os outros apóstolos em prol de um único: o instável e irascível Pedro e funda uma igreja bem ao gosto dele; sem exigências intelectuais e com a total segregação das mulheres.

Nesse contexto, as evidências apontam que foi Sócrates, o personagem dos livros de Platão, que inspirou Paulo de Tarso ao criar o mito de Cristo. Em latim, CRISTOS pode ser também a evolução fonética de uma forma mais primitiva grafada como CRAESTOS, onde o encontro vocálico “AE” posterirormente se tornaria o “I”. Exatamente da mesma maneira que ocorreu a contração ditongal latina vista no caso do título imperial romano: CAESAR, CÆSAR, CESAR, CISAR. CRAESTOS é muito provavelmente uma transliteração no latim vulgar do vocábulo grego ΧΡΗΣΤΌΣ (CHRĒSTOS), onde a letra grega eta (H), pronunciada como um “e” longo, pode ter sido representada pelo ditongo latino (AE) também grafado através da ligadura (Æ). Já a letra chi (Χ) era indiscriminadamente transliterada pelo (CH) ou simplesmente por (C). Essa arbitrariedade dos autores romanos levou à confusão entre duas entidades diversas da mitologia grega; o deus ΧΡOΝΟΣ (CHRONOS) e o titã ΚΡOΝΟΣ (CRONOS). ΧΡΗΣΤΌΣ servia como chamativo ou epíteto recorrente no mundo greco-romano. Denotava um homem bom, honesto, digno, confiável, honrado, corajoso, correto, justo, virtuoso, imaculado, merecedor, eficiente, prestativo, solícito, gentil, afável, feliz, misericordioso, propiciador, humorado, simples, crédulo e até bobo. Um campo semântico em todo muito semelhante à descrição do perfil que hoje se associa à Jesus, principalmente nas denominações menos fundamentalistas do cristianismo. Entretanto, Jesus não foi o único, mais figuras históricas tiveram igual vocativo. Podemos citar ΣΩΚΡAΤΗΣ O ΧΡΗΣΤΌΣ (Sócrates, o Crestos ou o bondoso – c. 122-90 a.C.) que, apesar do epíteto, usurpou o trono da Bitínia, depondo seu próprio irmão e, mais tarde, foi o responsável pelo assassinato da irmã. Outro mencionado na “Vida dos Sofistas” de Flavius Philostratus (c. 170-250 d.C.) é o filósofo Crestos de Bizâncio. Houve ainda um prefeito de Roma com esse nome na época do imperador Antonino e ainda um bispo de Siracusa quando Constantino I estava no poder. Entre outros exemplos de personalidades, era também um nome ordinário entre a população da esfera cultural da Grécia, inclusive batizando pobres e escravos.

Tigela encontrada durante escavações das ruínas subaquáticas do antigo porto de Alexandria, Egito, em 2008 pelo arqueólogo subaquático francês Franck Goddio e seus colegas. Foi datada entre o período do final do século II a.C. e início do século I d.C.. Provavelmente foi feita na Síria e exportada para Alexandria, onde foi usada. Nela há uma inscrição em caracteres gregos que dizem “ΔΙΑ ΧΡΗΣΤΟU ΓΟΙΣΤΑΙΣ” (DIA CHRESTOU O GOISTAIS), que foi interpretada como significando “por Chrestos, o mágico” ou “o mágico por Chrestos”. Chrestos é um nome pessoal, bem como um adjetivo que significa “decente” ou “útil”.

Ao contrário de seu correlato ΧΡΙΣΤΌΣ (CHRISTOS), quase inexistente, ΧΡΗΣΤΌΣ (CHRĒSTOS) aparecia abundantemente nos textos clássicos gregos pré-cristãos de autores como Tucídides e Platão. Esse cenário manteve-se praticamente inalterado nos três primeiros séculos. Nos escritos gregos, a ocorrência do vocábulo com iota (Ι) continuava ínfima diante da sua contrapartida com eta (Η). Nos escritores latinos, as transliterações respectivamente em I e Æ ou E repetiam o mesmo padrão de frequência. No livro A Vida dos Doze Césares" de Caio Suetônio, na quinta biografia, sobre o imperador Cláudio (41-54 d.C.), há uma frase onde o nome aparece já com sua primeira contração fonética.

[Claudio] expulsou de Roma os judeus, que, sob o impulso de Chrestós, se haviam tornado causa frequente de tumultos (Iudaeos impulsore Chresto assidue tumultuantis Roma expulit).

Manuscrito de De vita Caesarum por Gaius Suetônio Tranquillus (ca. 69/75–Depois de 130), impresso por Robert I Estienne (1503–1559).

Pichação no Palácio de Tibério em Roma supostamente representando a Crucificação. Fica num canto sob uma galeria feita por Calígula para passar do Palácio ao Fórum. Representa dois postes altos unidos no topo por uma longa travessa, com uma barra mais curta a cerca de um terço da altura abaixo de cada poste, formando assim uma cruz do tipo tradicional. Contra cada uma dessas travessas é colocada uma escada, uma das quais uma figura com a inscrição TERTIVS está subindo; outro chamado PILVS fica na outra barra transversal empunhando um martelo. Há vestígios de uma terceira escada e uma corda no meio. De cada barra transversal pende uma corda segurada por uma figura chamada respectivamente FILETVS e NESTVLVS. Entre eles está um homem chamado EVLOGVS agarrando outro, como se com a intenção de tirar suas vestes. Acima está a notável inscrição CRESTVS VIRGIS EXACT * COESVS * SECRETIS MORIS SVPER PALVM VIRVM FIXVM, e o espaço intermediário é preenchido por um dístico amoroso, que obviamente nada tem a ver com o desenho. Uma outra cena interessante pode ser mencionada; um homem sobe a escada da direita portando uma tábua oblonga. Para muitos pode ser tentador ver nela a inscrição emblemática dos Evangelhos.

Exorcismo em que Chrestos é evocado nos Papiros mágicos gregos. Este é um corpo de papiros do Egito greco-romano, escrito principalmente em grego antigo (mas também em copta antigo e demótico), cada um contendo vários feitiços mágicos, fórmulas, hinos e rituais. Os materiais nos papiros datam de 100 a.C. a 400 d.C..

E até os primeiros apologistas cristãos, como Justino Mártir, Taciano de Adiabene e Clemente de Alexandria, defendiam o cristianismo nascente ressaltando o significado da grafia com eta e como era injusto serem chamados de “seguidores do homem bom” (crestians) e não serem vistos com as mesmas qualidades.

Ordem para prender um Chrestian, Egito 28 de fevereiro de 256 d.C.

Uma carta de recomendação cristã presumivelmente do quinto século. Proveniência: Oxyrhynchus, grupo de manuscritos, a maioria em papiro, descobertos por arqueólogos num antigo depósito de lixo perto de Oxirrinco no Egito. O epíteto Chrestiano foi usado deliberadamente como autorreferência. Tradução: “Eu escrevo para você, Apa Theon, eu, Heras, um Chrestian, saudações no Senhor. Eu envio seu escravo Heortasius. De acordo com costume conceder-lhe tudo o que você tem. Isso você vai encontrar diante do Senhor”. Pouco antes da primeira linha de texto na margem esquerda pode ser vista o símbolo distinto da cruz.

Inscrição em estelas funerárias da Frígia 240-310. Na Frígia, várias inscrições em pedras funerárias usam o termo Chrestian ou Chreistian.

Inscrição numa sinagoga na Síria, datada de 318/9 d.C.: O Isu Chrestos de Marcion Deir Ali (Lebaba). Συναγωγη Μαρκιωνιστών κωμ(ης) Λεβαβων του κυριου και σωτη)ρ(ος) Ιη(σου) Χρηστου προνοια(ι) Παύλου πρεσβυτερου) -- του λχ' ετους. (Sinagoga dos Marcionistas na aldeia de Lebaba do senhor e salvador Jesus, o Bom. Erguida pela previdência de Paulo o presbítero, no ano passado.)

Igreja de Megido (Israel): um sítio arqueológico que preserva as fundações de uma das mais antigas igrejas já descobertas por arqueólogos, datadas do século III dC. Tradução: Lembre-se / Primille e Kuri-/-ake ("Do Senhor") e Dorothea ("presente de Deus") / e também Khrêste ("O bondoso").

A patrística em sua maioria, e Justino em particular, tinha apreço por alguns filósofos gregos que foram dignificados com o epíteto de O ΧΡΗΣΤΌΣ (Ó CHRĒSTOS) pela tradição intelectual do Império e os privilegiava com o título de “pagãos virtuosos”. Mas louvavam especialmente um deles ao ponto de o celebrarem de muitas maneiras como um prenúncio de Jesus. E este não era outro senão Sócrates. E, de fato, os escritos patrísticos em latim podem muito bem ter divulgado a transliteração fonética “CRAESTOS”. A qual guarda uma curiosa relação com nome do filósofo dialético. Quem aí gosta de anagramas? Além do que os paralelos evidentes entre as duas imagens construídas para Jesus e Sócrates não lhes passariam desapercebidos. E lhes forneceriam justos e suficientes motivos para fazerem uma identificação carismática entre as duas personalidades. Senão, vejamos:

1. Ambos eram considerados forasteiros e perseguidos pelo status quo.

2. Nenhum dos dois exerceu cargo público.

3. Nenhum dos dois deixou escritos de seus ensinamentos, mas seus seguidores sim.

4. Nenhum dos dois queria prevalecer através da violência, contribuíram para propagar um movimento por princípio popular e pacífico.

5. Ambos polarizaram as pessoas por falar com sinceridade sobre suas crenças.

6. Ambos foram intransigentes com a honestidade de seus discursos.

7. Ambos enfrentaram a morte de forma voluntária e resoluta.

8. Seus amigos e seguidores tentaram dissuadi-los de se sacrificarem por suas causas.

9. Ambos estabeleceram um fundamento sobre o qual seus seguidores construíram.

10. Ambos expuseram a hipocrisia do poder das altas castas religiosas e políticas.

11. Ambos ministraram às pessoas desprivilegiadas da sociedade de seus tempos.

12. Ambos foram acusados e condenados por crimes contra a religião e o governo.

13. Jesus era associado a uma vida sem pecados e Sócrates a um caráter moral impecável.

14. Ambos foram vistos como autorizados por uma vontade universal, mas que não foram reconhecidos pelas autoridades terrenas.

15. Ambos priorizaram sua lealdade a uma estância superior às hierarquias seculares.

16. Ambos tiveram declarações proféticas disseminadas sobre eles e a respeito de suas missões.

17. Ambos foram postos como contraponto à maldade de seus acusadores e assim os chamando à consciência e ao arrependimento.

18. Ambos poderiam ter escapado da morte, mas a encararam como um destino adequado às suas missões.

19. A morte de ambos foi consagrada a um bem maior pelos seus seguidores.

20. Ambos tinham como missão corrigir o que consideravam erros nos seus opositores personificados por sofistas ou fariseus em cada caso.

21. Ambos foram elevados como mestres na busca por valores mais elevados de virtude ou amor em cada caso.

22. Ambos foram postos como críticos dos rituais irracionais, tanto na religião como nos regimentos do governo.

23. Ambos foram vistos como caminho para um novo sistema filosófico ou nova aliança em cada caso.

24. Ambos propunham ensinamentos que enfatizavam a humildade para conhecer a verdade.

25. Ambos anunciavam as bênçãos da vida após a morte e advertiam sobre o castigo eterno.

26. Nenhum dos dois buscava fama, riqueza ou popularidade, mas viviam na pobreza, segundo seus seguidores.

27. Ambos usaram perguntas para supostamente expor a ignorância de seus opositores.

28. Ambos ensinaram a não retribuir o mal com o mal.

29. Ambos foram postos como vítimas de sistemas legais injustos.

30. Ambos foram vistos como homens honestos que sofreram pela verdade.

31. Foram contadas estórias da ressureição de ambos. Jesus literalmente e Sócrates figurativamente.

32. Sócrates fez uma defesa fundamentada em seu julgamento, enquanto Jesus converteu sua condenação em ato de fé no livramento eterno dos justos.

33. Ambos iniciaram movimentos que mudaram o curso da civilização humana. Sócrates foi transmitido principalmente por Platão e Xenofonte. Já o legado de Jesus se propagou através de Paulo e Pedro, cujos esforços evangelísticos e martírio eventualmente converteram o Império Romano e a Civilização Ocidental ao Cristianismo. A filosofia grega forneceu as ferramentas de raciocínio e o vocabulário necessários para ajudar os pais da Igreja Católica na formulação precisa da doutrina cristã, que se configurou num neoplatonismo simples e popular.

Sócrares e Cristo. Dois personagens literários criados respectivamente por Platão e Paulo para emularem o mesmo arquétipo mitológico: o herói que se sacrifica por um bem maior.

A cruz cristã e o cálice de cicuta. Os símbolos emblemáticos do sacrifício do herói expiatório, resoluto e voluntário.

O que reforça minha postulação inicial; Jesus, o chrēstos, é uma personagem literária criada por Paulo de Tarso, ao reciclar com nova roupagem as características fundamentais de outra personagem literária inventada por Platão; Sócrates. Com isso não estou tirando a probabilidade de que o Jesus e o Sócrates históricos tenham realmente existido, mas que os protagonistas dessas dramatizações, construídos com diversas licenças narrativas por Paulo e Platão, possam ter sido baseadas, em maior ou menor grau, em homens com historicidade rastreável através de fontes independentes de seus respectivos nichos literários.

Durante os três primeiros séculos, toda essa narrativa estava muito bem contextualizada com a cultura helenística. Até que entra em cena Constantino I e seu conselheiro cristão recém convertido chamado Lucio Célio Firmiano Lactâncio. Para eles, o deus da nova religião oficializada pelo Império não poderia se vincular a um nome contaminado pelo uso pregresso. Afinal, ele circulava há séculos como identificação de indivíduos da plebe e do mais baixo estrato social composto por mendigos e escravos. E, ainda, figurava nos compêndios eruditos como epíteto de filósofos pagãos, principalmente de um que foi condenado por ateísmo e corrupção de jovens. Um designativo realmente inaceitável para os seus altos padrões de nobreza. Para extirpar esse inconveniente, Lactâncio resgatou e enfatizou a versão que sugeria uma linhagem judaica nobre para Jesus, retrocedendo-a até o lendário rei Davi. E, assim, garantia a divindade e a realeza de seu profeta ao proclamá-lo o verdadeiro Messias anunciado no Velho Testamento hebreu. A palavra hebraica para messias, com o significado de rei ungido, já havia sido transliterada para o grego e o latim, sendo usada nessa acepção em diversos textos clássicos por anos. O problema era que o epíteto antigo já estava bem difundido e aceito entre os fiéis da nova religião e mudar o nome familiar para outro estranho, em curto espaço de tempo, poderia causar um choque e até rejeição. Mas a providência agraciou Lactâncio com um obscuro e bem conveniente parônimo de CHRĒSTOS. Um achado e tanto também por uma evolução fonética convergente tornar os dois vocábulos indistintos na oralidade coloquial.  ΧΡΙΣΤΌΣ (CHRISTOS) remetia a algo sobre o qual foi espalhado, esfregado, massageado, emplastado óleo, pomada, unguento ou qualquer substância viscosa de caráter medicinal ou não. Daí se derivava conotações alternativas como untado, ungido, escovado, colorido, maquiado, caiado. O conselheiro imperial se aproveitou dessa distensão semântica e convencionou que o termo é um sinônimo aceitável em grego para messias. Algo sem nenhum respaldo na tradição literária anterior. Nos textos gregos antigos quando havia referência ao MESSIAH (משיח) judaico era usada a transliteração quase imediata: ΜΕΣΣΊΑΣ. Mas como explicar o eta, o Æ e o E evidentes nos registros dos primeiros padres, nas cópias anteriores do Novo Testamento e nos artefatos de cultos até ali? Simples: promove-se um retcon geral, justificando que tudo sempre se tratou de um erro dos ignorantes.

“Mas o significado desse nome deve ser estabelecido, devido ao erro dos ignorantes, que pela mudança de uma letra costumam chamá-lo de Chrēstus”. - Lactâncio. Instituições Divinas, Livro IV (Da Verdadeira Sabedoria e Religião), Capítulo 7 (Do nome do filho, e de onde ele é chamado Jesus e Cristo).

A obra De Divinis Institutionibus ("Instituições Divinas") deve ter sido escrita entre 303 e 311. Foi por essa época ou pouco depois que surgiu a amizade entre Lactâncio e Constantino I. O recém entronado imperador o nomeou mestre pelos anos de 311 a 313. Além de tirá-lo da pobreza, tornou-o ainda preceptor de latim do seu filho, Crispo. A quem ele provavelmente seguiu para Augusta dos Tréveros em 317, quando Crispo se tornou co-imperador. Um período da sua vida que deve ter durado até 326, ano da execução de Crispo. Embora, pouco se saiba de quando e como Lactâncio morreu.

Até um período muito tardio do seu reinado, no entanto, Constantino não abandonou claramente a sua adoração ao deus imperial Sol, que manteve como símbolo principal nas suas moedas até 315. Só após 317 é que ele passou a adotar clara e principalmente lemas e símbolos cristãos, como o "chi-ró", emblema que combinava apenas as duas primeiras letras gregas do nome da divindade: "X" e "P" sobrepostas. A ausência da terceira letra que poderia ser eta (H) ou iota (I), não denunciava, a princípio, seu aval à posição de Lactêncio. Mas ele ficará claro no concílio de Niceia, em 325, quando o credo Niceno tornará a opção pelo eta um anátema. Por isso penso que o Capítulo 7 do Livro IV das Instituições Divinas é o divisor de águas entre duas formas de conceber Jesus, uma cisão simbolizada apenas pela mudança de uma letra no seu epíteto. O eta do homem bom e o iota do rei divino. O caminho está todo marcado neste capítulo que merece ser reproduzido em sua totalidade:

“Alguém talvez pergunte quem é este tão poderoso, tão amado por Deus, e que nome Ele tem, que não apenas foi gerado antes do mundo, mas também o arranjou por Sua sabedoria e o construiu por Seu poder. Em primeiro lugar, convém que saibamos que Seu nome não é conhecido nem mesmo pelos anjos que habitam no céu, mas somente por Ele mesmo e por Deus Pai; nem esse nome será publicado, como relatam os escritos sagrados, antes que o propósito de Deus seja cumprido. Em seguida, devemos saber que este nome não pode ser pronunciado pela boca do homem, como Hermes ensina, dizendo estas coisas: Agora a causa desta causa é a vontade do bem divino que produziu Deus, cujo nome não pode ser pronunciado pela boca do homem. E logo depois a Seu Filho: Há, ó Filho, uma palavra secreta de sabedoria, santa respeitando o único Senhor de todas as coisas, e o Deus primeiro percebido pela mente, para falar de quem está além do poder do homem. Mas, embora Seu nome, que o Pai supremo lhe deu desde o princípio, não seja conhecido senão por Ele mesmo, no entanto Ele tem um nome entre os anjos e outro entre os homens, pois é chamado Jesus entre os homens.: pois Cristo não é um nome próprio, mas um título de poder e domínio; pois com isso os judeus estavam acostumados a chamar seus reis. Mas o significado deste nome deve ser estabelecido, devido ao erro dos ignorantes, que pela mudança de uma letra estão acostumados a chamá-lo de Chrestus. Os judeus já haviam sido instruídos a compor um óleo sagrado, com o qual aqueles que foram chamados ao sacerdócio ou ao reino poderiam ser ungidos. E como agora o manto de púrpura é um sinal da assunção da dignidade real entre os romanos, também para eles a unção com o óleo sagrado conferia o título e o poder do rei. Mas como os antigos gregos usavam a palavra ΧΡΙ'ΕΣΘΑΙ para expressar a arte da unção, que eles agora expressam por ἀΛΕΙ'ΦΕΣΘΑΙ, como mostra o verso de Homero: “mas os servos os lavaram e ungiram com óleo”; por isso o chamamos de Cristo, isto é, o Ungido, que em hebraico é chamado de Messias. Portanto, em alguns escritos gregos, que são mal traduzidos do hebraico, a palavra eleimmenos é encontrada escrita, da palavra aleiphesthai, unção. Mas, no entanto, por qualquer um dos nomes um rei é significado: não que Ele tenha obtido este reino terrestre, o tempo para receber que ainda não chegou, mas que Ele governa um reino celestial e eterno, sobre o qual falaremos no último livro. Mas agora vamos falar de Sua primeira natividade.”  

Lactâncio pode não ter testemunhado em vida o concílio de Niceia, mas vejo evidências de que foi o catalizador político e intelectual das intenções de Constantino para o realizar. Além de lhe conferir o suporte teórico e retórico para o cisma que se propagou a partir dali e se conflagrou radicalmente nos 100 anos seguintes, inclusive levando à divisão do império em suas contrapartes ocidental e oriental. O embate entre as visões arianista e ortodoxa pode ser sintetizada na disputa pelo verdadeiro epíteto de Jesus. Cresto, o sumo bom, contra Cristo, o substancialmente divino. Como sabemos, o iota irá vencer definitivamente em dois séculos e o eta sofrerá uma campanha sistemática de censura, supressões e interpolações em quase todos os manuscritos anteriores e posteriores que lhe davam preferência. Foi uma estratégia conduzida nos registros históricos com extremo sucesso, ela obscureceu uma transição planejada e compulsória de ideologia atrelada ao rebatismo da deidade. Essa eficácia se deveu, em grande medida, ao monopólio dos serviços de preservação e cópia de documentos no ocidente ter ficado retido nas mãos da vertente vitoriosa. O que constitui um cenário tipicamente orwelliano: “quem controla o passado controla o presente...”. Citações e referências foram forjadas e reprojetadas nos primeiros séculos para corroborar um improcedente consenso original em torno da concepção teológica de Jesus como Cristo. Uma rede de adulterações nesse sentido operou na França carolíngia do século IX, algo bem documentado nos "Decretos Pseudo-Isidorianos". Quando se investiga as primeiras referências explícitas ao termo com iota nas primeiras fontes da era comum, nada confiável se encontra até o Codex Alexandrinus, datado pelo menos ao redor do século 5. Antes disso, invariavelmente aparece o termo com eta com ocorrências mais consistentes ao contexto dos manuscritos. O mais provável é que todo o processo tenha sido desencadeado oficialmente no Primeiro Concílio de Niceia em 325, com o decreto do Credo Niceno que condenava a variante contemplada pelos escritos até ali. Deve ter se seguido, então, um período de acomodação e conflito entre os contendores das duas concepções. O qual pode ter se prolongado pelo menos até o Credo niceno-constantinopolitano, promulgado no Primeiro Concílio de Constantinopla em 381. Reforçando o edito anterior, este joga uma pá de cal definitiva na versão contestada por Lactâncio sete décadas antes. A partir daí, foi só uma questão de arranhar o eta (H) para transformá-lo num iota (I) nos texto em grego; ou raspar o E para torná-lo um I nos congêneres em latim. E, assim, a troca de uma única letra pôde mudar totalmente a conformação daquela que se tornaria a maior religião do ocidente.

O historiador e senador romano Tácito referiu-se a Jesus, sua execução por Pôncio Pilatos e a existência dos primeiros cristãos em Roma em sua obra final, Anais (escritos por volta de 116 d.C.), livro 15, capítulo 44. Em detalhe, página do Codex Laurentianus Mediceus 68.2 (f. 38 r) contendo Annales xv. 44.4: na palavra 'Christianos' é destacada a lacuna entre o 'i' e o 's'.

O Codex Sinaiticus é um manuscrito de texto tipo alexandrino escrito no século IV em letras unciais em pergaminho. O entendimento acadêmico moderno o considera como sendo um dos melhores textos gregos do Novo Testamento, juntamente com o Codex Vaticanus. O seu escriba escreveu "chrestians" nas três passagens do Novo Testamento onde essa palavra ocorre (Atos 11:26, 26:28 e 1 Pe 4:16). Neles se torna visível o processo de raspagem para transformar o eta (H) num iota (I).

Quem aí gosta de anagramas?