A ARCA DO TRIUNFO

Uma fábula sobre o pragmatismo ingênuo.

Capítulo I: A Loteria do Sr. Paschoal Abrazel.

O Sr. Paschoal Abrazel apenas cobrava pela oportunidade de todos flertarem com a sorte, mas não era sua culpa que ela se fizesse de tão difícil e se encantasse de tão poucos.

A princípio, se deu pouco crédito à campanha promocional que anunciava a nova e sensacional loteria do Sr. Paschoal Abrazel. Conhecido nacionalmente como “Mister”  Simpatia, ele tornara-se o empresário mais bem sucedido do ramo de entretenimento que a mídia já produziu neste país. Sua fortuna teve início na década de cinquenta. Começou como reles mascate em feiras das cidades do interior de São Paulo. Vendia tecidos e perfumarias que comprava na capital. Durante alguns anos, trabalhou como qualquer ambulante do interior; fiando-se em sua boa lábia de vendedor e majorando ao máximo o preço de seus artigos. Continuasse assim e ainda estaria vendendo bugigangas até hoje, sem amealhar seus milhões. Contudo, teve uma daquelas ideias que mudam toda uma vida.  Ou melhor dizendo, plagiou um método de comércio já tradicional em festas juninas e parques de diversão. As pescarias e tiros ao alvo faziam com que, na prática, as prendas rendessem bem mais do valiam. Percebeu, então, que era burrice vender diretamente suas mercadorias; seria muito mais lucrativo negociá-las através de rifas, gincanas, jogos ou sorteios de qualquer tipo. Logo sua banca em feiras, praças, parques e quermesses se transformou num show à parte. Com anedotas e ditos jocosos, animava os que se acercavam a participar dos jogos ou comprar seus bilhetes. Seu golpe de gênio nos negócios foi oferecer ao público um artigo muito mais atrativo que seus badulaques; ele tinha passado a vender sorte. Tal mercadoria lhe saía quase de graça e o lucro auferido cresceria proporcionalmente ao aumento da sua clientela de apostadores com azar. A matemática era simples: mais ele ganharia quanto mais pessoas perdessem

Apesar de não parecer, isso era completamente lícito, pois ninguém era enganado. Os perdedores não tinham motivos para reclamar, os sorteios eram feitos de forma corretíssima e aos olhos de todos. O Sr. Paschoal Abrazel apenas cobrava pela oportunidade de todos flertarem com a sorte, mas não era sua culpa que ela se fizesse de tão difícil e se encantasse de tão poucos. E, assim, seu negócio prosperou e sua popularidade cresceu nas cidades por onde passava até chegar à capital. Lá conheceu um novo veículo capaz de levar seu show da sorte a outros rincões; a recém-inaugurada televisão. No final da década de sessenta, sua imagem deixou as feiras e praças e passou a entrar semanalmente na casa das pessoas. Não precisava mais se deslocar para estar em vários lugares e ao mesmo tempo. Tornou-se rapidamente uma das primeiras celebridades construídas pela nova mídia. Embora, o seu próprio nome nunca tenha sido vinculado à sua imagem. Por algum motivo, talvez para não chamar a atenção sobre sua etnia, deixou que o grande público apenas o conhecesse pelo seu pseudônimo; Paulo Prata, o Mister Simpatia

A peça publicitária que Paulo Prata veiculou em cadeia nacional prometia nada menos que o maior prêmio oferecido por uma loteria em toda a história e em todo o mundo. E não só isso, alardeava ainda que este valor jamais poderia ser ultrapassado; por ser, em suma, uma quantia impossível de ser enumerada. Assim, justificava o slogan: “A loteria de um zilhão de dólares; simplesmente todo o dinheiro que você puder gastar pelo resto de sua vida! ”. Toda essa fantástica fortuna seria sorteada com as mesmas chances de qualquer outra loteria e o bilhete não custava tão mais caro que os demais. Ele a batizou com o sugestivo e alusivo nome de “A Arca do Triunfo”. Literalmente, um baú do tesouro inesgotável, um repositório sem fundo de riqueza. Em seu programa de televisão, vangloriava-se de não só disponibilizar a sorte grande como também de fazê-la imune a todos os reveses da vida. O infortúnio e os azares inevitáveis de percurso seriam imediatamente compensados na mesma moeda. Fosse o quanto fosse que se perdesse, o mesmo valor seria ganho de volta. Uma existência totalmente sem riscos ou sobressaltos era a sua solene promessa. O ganhador não precisaria se preocupar com o retorno de seus investimentos; de uma forma ou de outra, eles nunca lhe dariam prejuízo. “Esta, sim, é a verdadeira liberdade de gastar sem precisar ter qualquer cuidado ou culpa; o que vai fácil voltará mais fácil ainda!”. Arrematava o sorridente animador de auditório. 

Claro, todos pensavam: era maravilhoso demais para ser verdade. Mas, por que não? Que mal havia em sonhar? E não custava tanto assim fazer uma fezinha na proverbial reputação de dispensadora de dons milionários das empresas do Grupo PP. Então, junto à Loteria Federal, às loterias estatuais, ao jogo do bicho e à loteria esportiva, um número cada vez maior de pessoas foi acrescentando também a “Arca do Triunfo” no rol de suas esperanças de riqueza.

Capítulo II: Arrebatados

Pelo menos, ele foi para um lugar melhor, para uma vida de abundância e júbilo!"

Muitos dos moradores de Espinhão Santo conheciam o seu Natalino Crisósimo, dono da carpintaria São José, casado com dona Dolores e pai de três filhos ausentes; todos morando na cidade grande. E qual não foi a surpresa de todos na interiorana cidadezinha, ao saberem quem havia sido o primeiro feliz premiado d’A Arca do Triunfo? Contudo, ninguém encontrou Seu Natalino quando quiseram felicitá-lo pela imensa sorte. Só Dona Dolores foi localizada e ela declarou que nada sabia do marido desde que recebera a visita de um grupo de homens engravatados, há uns seis dias. Contou, meio aflita, que, após conversar reservadamente com os sujeitos a pedido dos próprios, o seu Natalino se dirigiu a ela muito apressado.  Disse que precisaria viajar para São Paulo com urgência, mas que não era nada para se preocupar; pelo contrário, eram boas novas, só estava impedido de lhe adiantar qualquer coisa por hora. 

Assim, a esposa viu o marido enfiar apressadamente algumas mudas de roupa numa velha maleta, se despedir e entrar num furgão que esperava pelos estranhos, a uma pequena distância da casa dos Crisósimos. Depois disso, o único contato que teve com o esposo foi pela televisão; exatamente do mesmo modo que todo resto da cidade. No programa especial em que Paulo Prata revelou bombasticamente “o primeiro maior felizardo do mundo de todos os tempos”, seu Natalino apareceu já desfrutando de sua infinita fortuna num paradeiro desconhecido. Talvez algum paraíso tropical de entrada restrita, um lugar que bem poderia ser um dos refúgios típicos de ricos e famosos. A Arca do Triunfo havia, em todos os sentidos, mudado a vida do carpinteiro de Espinhão Santo. O mais certo, no entanto, era dizer que o havia feito trocar de vida, abandonar a antiga por uma totalmente nova. E nesta, o único vestígio da anterior era a sua própria pessoa, mas que nem parecia a mesma, depois do bom banho de loja que levou. 

Em Espinhão Santo, não faltou quem se predispusesse a elevar o ânimo de dona Dolores, nos dolorosos meses de espera que se seguiram ao grande evento. “Ele só está aguardando a poeira assentar para vir buscar a senhora”. Era o que ela passou a ouvir repetidamente, cada vez dito com menos convicção. O fato é que passaram os anos, muitos outros sorteios ocorreram e, todavia, seu Natalino jamais foi visto em parte alguma. Dona Dolores finalmente, um dia, parou de esperar e continuou sua vida com o que tinha lhe restado. 

Mas, por incrível que pareça, a história do seu Natalino não foi um caso isolado. Aliás, ela estabeleceu um padrão que delineou o destino de todos os que foram sorteados posteriormente, sem uma única exceção. Familiares, amigos, namoradas, amantes, cães e gatos: todos eram inexoravelmente deixados para trás sem nenhuma explicação ou justificativa. Os mais fortes relacionamentos eram quebrados da noite para o dia. Mesmo quem jurara, de pé junto, que consigo seria diferente sucumbia ao comportamento recorrente dos premiados, quando a sua vez chegava. Que peculiaridade inusitada havia nesse prêmio para fazer aflorar um individualismo tão radical e irresistível nas pessoas? A resposta era um mistério; ninguém nunca voltara para contar a sua estória. A última e derradeira aparição do ganhador sempre ocorria no fatídico programa do Paulo Prata, onde ele era apresentado como o sujeito mais afortunado do momento. No seu marketing mais agressivo, a loteria se apressou a adotar essa imagem emblemática de ruptura extrema com a rotina, o cotidiano, o antigo e o passado pessoal. Em sua campanha comercial, a chamada apelava para uma transformação de vida total, definitiva e para sempre. Uma mudança que era regida pelo puro acaso, desencadeada pelo advento de uma eleição fortuita. 

Mesmo não se sabendo o motivo para uma mudança tão abrupta e, às vezes, inesperada de caráter, passou a ser opinião fatídica geral que essa era uma característica inerente à própria especificidade da premiação; um ônus inseparável do bônus concedido pela gratuidade do destino. Tal pensamento confortava a maioria das famílias. Elas se resignavam com a perda como se fosse mais um fato da vida. “Pelo menos ele foi para um lugar melhor, para uma vida de abundância e júbilo!”. Era mais ou menos isto que se dizia ao final de longas expectativas e esperas. E o sentimento que transparecia, nesses momentos de compassiva comoção, era bem próximo ao pesar pela morte de qualquer outro ente querido. Isso criou uma mística toda própria em torno do concurso: a evocação de um certo ar de assombro diante da possibilidade de uma experiência desconhecida reservada aos poucos escolhidos. Neste estágio, nas mentes mais religiosas, o que era simples interesse material sublimou-se em desejo de transcendência; veio a ser aspiração para galgar um além, uma forma de estar acessível para ser arrebatado desta para uma outra vida. Para estes, as apostas se converteram numa nova liturgia e passaram a fazê-las em contrita reverência. 

Bom, nem todos, há de se convir, agiam assim. Algumas famílias não aceitavam de bom grado o desaparecimento de um familiar e procuravam o quanto podiam nos lugares conhecidos, nos supostos destinos de uma viagem desejada e até onde não era provável. Os deixados em melhores condições financeiras corriam o mundo, infiltravam-se nos mais seletos e caros paraísos terrestres, seguiam a mais ínfima pista, ofereciam recompensas por informações. Todavia, nada surtia efeito, qualquer busca redundava em fracasso, todo esforço era vão. Os que recorriam à polícia não eram levados a sério, pois não havia como provar o desaparecimento. Para os policiais era notório e público que todos se ausentaram de seus conhecidos por vontade própria e que, definitivamente, não queriam ser encontrados. Judicialmente, os empreendimentos PP estavam bem resguardados; todos os ganhadores deixaram documentos que exigiam dos promotores do concurso sigilo absoluto sobre seus paradeiros e novas identidades. Os advogados do Grupo PP sempre recorreram de qualquer pedido de quebra de sigilo; alegando que, em hipótese alguma, estes dados deveriam ser revelados, não importando quem fosse o requerente. Demonstravam haver o claro risco de a parte interessada vir a ser exposta a um perigo real e imediato no que concerne à sua integridade física e emocional. Bens estes que o anonimato visava preservar. 

Nos primeiros anos, todos os acontecimentos que tinham alguma ligação com “A Arca do Triunfo” repercutiam vivamente entre a população. Em qualquer roda de bate papo se ouvia comentar sobre o último ganhador, sobre as chances de ser sorteado, sobre o que se faria com o prêmio. Havia até apostas sobre qual seria a atitude do mais recém agraciado em relação aos conhecidos. Com o tempo esse tipo de aposta foi perdendo o interesse; a atitude geral dos ganhadores não mudava. E era justo isto que intrigava muito a todos. Por que nunca nenhum fugia a regra? E foi de repente que, para um grande contingente do público, este fato curioso passou a ser encarado como uma espécie de maldição da loteria. Entre estes, houve os que começaram a temer que as pessoas com quem se afeiçoaram, tinham consideração ou dependiam financeiramente ganhassem no concurso. Tentavam, então, dissuadir seus conhecidos da decisão de comprar um bilhete da malfadada loteria. Um argumento comum contra essas investidas carinhosas era dizer: “não se preocupe, isso não acontecerá comigo, continuarei a ser o mesmo e, ainda por cima, é remotíssima a chance de eu vir a ganhar”. Assim, certas pessoas desenvolviam sentimentos ambíguos em relação à loteria; por um lado não desejavam que os muito próximos fossem sorteados, mas intimamente nutriam a ambição de serem eles os favorecidos pela sorte. 

No entanto, nem mesmo esses percalços arrefeceram o estrondoso sucesso e aceitação que a loteria angariou entre todas as classes sociais da nação. Ela foi, aos poucos, sendo adotada como instituição nacional e patrimônio coletivo das massas. Um culto à personalidade dos contemplados foi paulatinamente se estabelecendo no cotidiano do cidadão comum. As revistas do tipo “quem é quem” esgotavam as tiragens das edições especiais em que o foco era dirigido ao mais novo ganhador. Biografias autorizadas e não autorizadas começaram a proliferar. Os perfis dos ditos “eleitos”, então, ganhavam a boca do povo; cada qual gerando empatia com um determinado grupo de pessoas. E não demorou muito para que, em torno das preferências que iam surgindo, muitos se solidarizassem e se reunissem para formar núcleos e agremiações, cujo propósito era promover o nome e o caráter de seus inspiradores. Outra forma de prestar homenagem, que foi crescendo em popularidade, constituía-se no “santinho” com a foto do “seu ganhador favorito”. Inúmeras carteiras portavam um destes com o intuito de favorecer a boa sorte nas finanças. Abria-se, deste modo, um filão lucrativo que o Grupo PP logo tratou de monopolizar, numa estratégia que o levou a encampar revistas, jornais e editoras. Mídias que vieram reforçar o poder de comunicação dos canais de TV que a “holding” já possuía. Deste modo, a loteria se enraizou sorrateiramente no imaginário popular e foi alçada ao status de uma desincorporada entidade propiciadora ressurgida das eras mitológicas.

Capítulo III: O Corredor da Sorte 

““O homem morto que vive”: esta é uma forma muito deprimente de vocês verem as coisas."

A Arca do Triunfo já ultrapassara os trinta anos de existência, no dia em que Jordano Bruno foi chamado à sala do seu redator; um jornalista da velha guarda chamado Simão Marcos, sujeito bonachão ao qual todos se referiam como “o velho leão marinho”. E o motivo para ser conhecido assim não se devia apenas à sua corpulenta figura; Jordano sabia que era algo relacionado mais com o seu jeito de ser do que propriamente com a sua aparência física. Mas ele ainda não trabalhara tempo suficiente naquele jornal para conhecer as peculiaridades de seu chefe. Naquele momento, ainda não passava de um novato, não muito mais que um estagiário que sempre era indicado para as tarefas preteridas pelos veteranos. Não alimentava esperanças de que fosse diferente desta vez. Armado desse espírito, deu um profundo suspiro e foi se apresentar, resignado. 

 Você consegue trabalhar sob pressão? – Lançou-lhe logo de súbito o redator, mal o estagiário entrou na sala.

 Consigo, sim. – Respondeu sem pestanejar e sem, também, ter muita certeza do que dizia.

Uma semana. Chorando muito, talvez quinze dias. Mas não conte muito com isso. E fique sabendo: no caso de se comprometer e não cumprir o estipulado, será “tchau e bença”. – Retrucou de uma só levada, incisivamente.

– Mas que bendito serviço é esse? Já estou sentindo que não é boa coisa. – Disse, preparando-se para a bomba que certamente seria colocada em suas mãos.

Ora, estou muito magoado! Você sabe que o “velho leão marinho” sempre cuida bem de seus “focas”. – Com essa pequena ironia, dissolveu qualquer ar tenso que pudesse ter provocado e se esparramou na cadeira.

Não enrola, desembucha logo! – Ousou, se sentindo mais à vontade.

Bem, o pessoal da Editora Arca esteve aqui hoje, estão precisando de alguém para escrever a biografia do mais recente contemplado da Arca do Triunfo.

Outro “dead man living”, mais um para o corredor da sorte?

– “O homem morto que vive”: esta é uma forma muito deprimente de vocês verem as coisas.

– Mas é isso mesmo: apesar de continuarem vivo, na prática estão mortos para nós que ficamos. Para todos os efeitos morreram pra vida que tinham.

Isso é filosofia demais para um jornalista, principalmente neste jornal. Não preciso lhe dizer quem é o nosso patrão, preciso?

Sei, o que importa é que essas insossas brochuras, espalhadas por bancas em todo país, vendem mais que pão quente. E não interessa muito se os biografados tenham tido uma vida solitária e tão pouca história para contar que só um conto daria conta de toda ela. 

Não me venha falar de encheção de linguiça, eu sei bem o que é: já escrevi uma dessas biografias para descolar um extra. Não menospreze a grana por puro idealismo. Em absoluto, este é um trabalho que ninguém queira. Você não é o primeiro da lista, muito menos é o último. Faria eu mesmo se dispusesse de tempo livre. E como algumas outras opções não estavam disponíveis no tempo hábil, a sua vez chegou; mas pode passar. O motivo para que esteja na lista foi o infeliz acaso que me levou a ler um obituário de sua lavra: um velho amigo meu veio a falecer recentemente.

Meus pêsames.

Tudo bem. Apesar do tempo de amizade, não éramos tão chegados assim. Mas gostei do seu modo de escrever; fluido, fácil de ler e, o mais importante no que vem ao caso, sem palavras difíceis.

– Ah, mas isso não é mérito nenhum. É o meu vocabulário que é bastante restrito mesmo.

Um pouco de humor também não fará mal. De qualquer forma, garoto, é uma excelente oportunidade para quem só fez obituários até agora.

O que me qualifica ainda mais para esta empreitada; afinal, escreverei sobre um homem que morrerá para esta vida e renascerá em outra muito melhor.

– Que você pense assim, tudo bem; mas não deixe que esse tipo de noção vaze para o texto.

Não tem problema, não vai acontecer.

– Pois bem, tome a ficha do sujeito e se prepare para entrevista que será feita amanhã.

Amanhã? E onde vai ser?

Eu não sei e você também não saberá: regras do jogo, não há outro jeito. Você entrará num avião, mas não terá condições de saber para onde estará indo.

–Sinistro! – Deixou escapar enquanto folheava o dossiê que havia recebido.

Eu diria angustiosamente enervante. Você metido num avião totalmente sem janelas.... É como estar dentro de um esquive metálico a quilômetros de altura: uma experiência realmente claustrofóbica.

Espera aí! Auschwitz? Tem certeza? – Prorrompeu, sacudindo ostensivamente a pasta.

É isso aí! Mas não se empolgue muito. Diga que ele esteve lá; contudo, evite chamar muita atenção para sua condição de judeu. Crie uma imagem de sobrevivente sem extrapolar e transformá-lo num mártir. Transmita alguma emoção, mas abstenha-se de provocar qualquer comoção. Um certo tom moderado de drama é desejável, porém não carregue muito nas tintas, se contenha nas descrições de desgraças; uma tragédia não seria de bom tom aqui. Apresente-me um leve e ameno melodrama que ficarei satisfeito e os nossos amigos da editora também. E, quem sabe, mais tarde você possa escrever algo com um pouco mais de liberdade. Estamos entendidos?

Totalmente. Deixa comigo, chefe; você terá uma novela das oito tipo light que agradará gregos e troianos.

Esse é o meu garoto! – Soltou com ar bonachão, ao mesmo tempo em que se desvencilhava da mesa para chegar perto e lhe aplicar uma chave de pescoço. Mantendo a chave e despenteando sem dó o cabelo do rapaz, levou-o até a porta.

E lembre-se: cinco dias, senão ó! – E o indicador do “velho leão marinho” cortou o ar passando rente ao seu pescoço.

Mas não era uma semana, talvez duas? – Lamuriou-se o jovem, mas só recebeu como resposta uma gargalhada irreverente para, em seguida, ter a porta teatralmente fechada em sua cara. 

Capítulo VIII: Bereshit 

In God we trust and in Your Holly Shit, too!"

Tão logo entrou na sala, Jordano foi recebido à queima roupa pelo esbravejar do redator. 

– Traidor miserável! Tu me apunhalaste pelas costas e agora dás o ar da graça como quem não quer nada.

Traidor? Quem? Eu?!!

– Não, tua querida avozinha! Não te faças de desentendido, sabes bem o que fizestes.

Do que está me acusando? Não fiz nada. Seja o que for, sou completamente inocente.

– Quanta desfaçatez! Seja macho e assuma que me passou a perna e me fez de bobo. Me aplicou o drible da vaca no maior desrespeito. Fingiu que cumpria o que determinei e disfarçadamente me fez engolir o que bem quis. Você deliberadamente não observou nenhuma de minhas instruções, mandou às favas tudo que cuidadosamente lhe recomendei. E tudo debaixo de um cinismo de fazer inveja. Você é muito desaforado: viu, garoto?

E só agora vem se queixar. Se percebeu, podia muito bem ter me dado o sermão e me despedido na hora. Também nada o impedia de embargar a publicação enquanto era tempo. Você deixou que tudo rolasse e depois da merda feita quer reclamar?

É que só fui perceber sua artimanha hoje, quando terminei de ler o famigerado “Diário do Capitão”.  

O quê?? Não leu quando eu entreguei as provas?

Não. Você acha que vou perder tempo lendo uma dessas modorrentas biografias. Dei para minha mãe ler. Ela assiste todas as novelas e sua opinião foi o que me bastou. Aprovei seu trabalho achando que era um inofensivo folhetim, sem suspeitar do ninho de cobras que havia escondido nele. Minha atenção só foi despertada pelo alvoroço que se formou em torno de sua publicação. Então, julguei que deveria lê-lo para que não me pegassem de calças nas mãos. E que eu descubro? O quê? Que és um grandessíssimo Judas. Além de muito mal-agradecido. Quanta ingratidão depois de tudo que fiz por sua insignificante pessoa! De mão beijada, lhe dei a maior oportunidade que um foca poderia obter. E o que recebo em troca? Menosprezo pela minha autoridade, a qual conquistei arduamente. Garoto, você desconsiderou, de forma intencional, as ordens diretas de um superior legítimo. E só tenho uma coisa a lhe dizer, rapaz; eu respeito isso, não incentivo, mas não posso deixar de admirar.

Quer dizer que não estou na rua?

E quem sou eu agora para poder despedi-lo? Isso já não está mais em minhas mãos. Você se tornou um intocável da mídia; vale simplesmente pela sua imagem, não precisa produzir nada de útil, basta apenas se expor. Esta é a paga da fama e também o seu preço.

Só lhe digo uma coisa; se expor já está se tornando cansativo.

– Mas tão rápido.... Você ainda será muito incensado. Acostume-se.

Estou tentando, mas a maioria das pessoas que encontro é tão superficial e convencida do próprio valor. Conto nos dedos as que captaram um mínimo do que infundi ao texto. 

Talvez, se não tivesse nenhum conteúdo para expor, poderia suportar a exposição por mais tempo. Entretanto, você construiu uma estória cheia de segundas intenções e instilou mensagens contundentes e provocadoras nela. Tudo isso escudado por declarações diplomáticas de seu protagonista; como esta, por exemplo, que anotei: “O EUA é país marcado por pequenas e grandes guerras que não lhe pertenciam, o que repercutiu na adoção de uma política externa agressiva e competitiva, ampliando o campo de batalha econômico para além de suas fronteiras”. Isto é modo de um sociólogo falar, não de um militar; logicamente não faz sentido nenhum, apesar de parecer muito sensato. Há aqui qualquer tendência alusiva ao processo de globalização e à corrida armamentista, mas não fica claro. E essa; dita a la Yoda, parece encerrar a dica para elucidação da trama: “Yoda caduco ser já, coisas diz que fácil perceber não é”. Você, de propósito, deu ao velho capitão uma personalidade levemente perturbada e paranoica. Pintou-lhe uma máscara com breves traços de loucura, cuidando para que evocasse uma indulgente simpatia e fosse de assimilação fácil. E, contudo, deixou que se insinuasse, por traz dela e em certos momentos, uma face de genuína lucidez; permitindo-lhe fazer inquietantes apartes em pontos estratégicos; nada disso abertamente, tudo muito bem dissimulado em deslizes desculpáveis de uma mente com princípios de esclerose ou em inócuas ranhetices de um velho quase senil.

– Mesmo assim, quero que saiba que não queria que se decepcionasse comigo, só não pude evitar; fluiu quase incontinente, algo semelhante a uma psicografia sem espírito.

Você não me decepcionou, garoto. Não sou dado a essas afetações. Embora, não possa negar que fiquei surpreso, e muito, com o que realizou. Sem nenhuma concessão, é um excelente trabalho. Também não sou dado a muitos elogios, mas sou justo e você fez por merecer. Só espero que todo esse confete não vá lhe estragar cedo demais. Mas não foi em busca de elogio que veio aqui, foi?

Não, realmente não. Quero me ajude num pequeno mistério.

Mistério? Adoro mistérios. Meu hobby preferido é destrinchá-los. Manda aí, vamos ver o que é.

Tome, veja esse anúncio fúnebre; isso talvez seja uma prece, mas está em hebraico.

Ou aramaico, ou iídiche; na escrita, compartilham o mesmo alfabeto, todavia são línguas faladas distintas. Mas que mistério há nisso, muitos judeus mandam publicar essas preces quando do falecimento de parentes e amigos.

O fato estranho é o sobrenome do sujeito que passou desta para melhor.

Bereshit... Realmente é um sobrenome judeu muito insólito, nunca deparei com um destes antes. Contudo, não me considero um grande conhecedor de famílias judias e pode ser um sobrenome que exista de fato. Ainda não atinei onde quer chegar.

Ontem, na noite de autógrafos, alguém anonimamente me passou esse pedaço de papel dentro de um dos livros em que fazia as dedicatórias.

Agora, sim, temos por onde levantar algumas suspeitas. Sem se denunciar abertamente, alguém lhe indicou a leitura desta oração.

Mas eu não sei hebraico ou qualquer uma dessas outras línguas. Não podia facilitar, pondo a mensagem em português?

–Talvez tenha motivos para dificultar. E o contratempo não foi tão grande assim, afinal a pessoa com recursos para a tarefa de tradução sempre lhe esteve acessível: eu. Então, vamos ao que interessa. Antes de mais nada, essa não é uma palavra comum; “bereshit” é o título do primeiro livro da Torah.

– Da o quê???

Da Torah. Oh senhor, perdoai esses ignorantes e infiéis! Sabe o Pentateuco?

Sei: os cinco primeiros livros da bíblia.

–Pois é, Torah é o nome original da obra entre os judeus, Pentateuco é a designação mais recente consagrada pelo catolicismo.

Saquei; então, “bereshit” é o título hebraico do Gênesis.

É isso aí! A narrativa onde se vê como Deus começou a “better shit” em que estamos. 

Jordano demorou um pouco para entender o trocadilho entre “bereshit” e “better shit”; quando então, desbragou-se em risos. 

Uuuh! Afinal a “melhor das merdas” não deixa de ser uma “santa merda”. Esta realmente é muito boa! Mas só funciona com sotaque norte-americano. – Sentenciou, após tomar fôlego.

Mas é para eles mesmo que se destina: “In God we trust and in Your Holly Shit, too!

–Contudo, seja “better shit”, “holly shit” ou não, convenhamos: pelo menos Deus começou alguma coisa, pior se não tivesse começado nada... Espera aí... Já sei... O mar vermelho acaba de se abrir na minha frente...

Que iluminação divina foi essa?

Só uma pessoa que conheci reúne os requisitos necessários para engendrar essa charada.